Article Image
Article Image
read

TL; DR

Revive-se hoje a preocupação de que as aplicações tecnológicas vão eliminar empregos, à semelhança de outras épocas. No entanto o papel da inovação é o de aumentar a produtividade e consequentemente a qualidade de vida. Se esse aumento de produtividade for superior à capacidade de gerar empregos, ou passar os limites humanos, o desemprego estrutural poderá ocorrer. É cada vez mais importante aplicar medidas de requalificação e assumir uma alteração de paradigma.

Não é uma história nova. No século XIX, o que começou com um pequeno movimento de revolta contra a maquinaria rapidamente tomou proporções descontroladas em Nottingham. Reza a lenda que um tecelão de meias e rendas chamado Ned Ludd viu o seu emprego escapar-lhe e decidiu destruir algumas máquinas de tecer que sentira terem um papel arguido. O acto serviu de exemplo a outros na industria têxtil, e ascendeu a uma rebelião a nível regional que terminou somente anos depois com intervenção militar.

A história varia amplamente, mas o movimento – chamado de Luditas – existiu e reflete o descontentamento do proletariado inglês em consequência de um evento de maior escala: a revolução industrial. A transformação dos processos artesanais em maquinaria gerou preocupação com a inutilidade humana no processo (i.e. despedimento) e consequente revolta, mas o incrível aumento na capacidade produtiva que a automatização gerava tornava a evolução incontornável. A falsa ligação entre a aplicação tecnológica (i.e. aumento de produtividade) e o desemprego ficou designada de falácia ludita. Revive-se hoje em dia a mesma preocupação.

“Se a falácia ludita fosse verdade todos nós estaríamos desempregados porque a produtividade já aumenta há dois séculos.”

Alex Tabarrok, economista estadunidense, 2003

A lista de novidades tecnológicas aplicadas ao retalho e serviços públicos já é grande. Quem vai ao Continente encontra caixas de pagamento self-service; no McDonnalds pode-se fazer o pedido completo numa máquina; no metro os balcões de informação quase nunca estão ocupados porque o passe carrega-se nos quiosques automáticos; nos parques de estacionamento e nos postos de combustível o pagamento segue por Via Verde; e aquela criatura em extinção, os operadores das portagens, quem se lembra deles? A lista continua sem se mencionar sequer o seio industrial, onde a automatização é vasta.

Aumenta-se a eficiência ao reduzir os custos dos intervenientes nos processos, que na maioria dos casos são humanos assalariados. Se um quiosque de pagamentos self-service custar 5000€ à entidade empregadora, bastam 9 meses de um salário mínimo para o investimento ter retornos positivos. Cinco meses se o salário substituído for mileurista.

Naturalmente, a produtividade (produção/horas trabalhadas) aumenta e, portanto, à semelhança da revolução industrial, é uma tendência inexorável. Mas é importante frisar que as máquinas não têm empregos, elas apenas automatizam tarefas. Empregos manuais, com tarefas especificas e bem delineadas, estão sob a pressão de verem a sua produtividade aumentar (ou, menos eufemisticamente, na iminência da extinção). Empregos que cubram um largo espectro de responsabilidades ou necessitem capacidades inerentemente humanas (expressar simpatia ou empatia, companheirismo, criatividade, etc.) estão mais protegidos. É um enfermeiro ou um calceteiro que está mais sujeito a ver as suas tarefas mecanizadas?


O primeiro impacto

Acredito que há um sector que vai atingir em breve um patamar de automatização tão elevado que será estruturalmente desconcertante. Uma evolução tão acelerada e simultaneamente tão abrangente que, para o bem e para o mal, vai romper diversos paradigmas dentro do sector. Falo da industria dos transportes. Falo também dos pequenos indicadores da existência de pressão para aumentar a produtividade nesta industria, como é o caso do aparecimento da Uber que - a ódio de muitos taxistas - veio perfurar uma industria tipicamente impermeável ao mundo eletrónico; ou da ubiquidade da navegação por GPS em telemóveis banais que veio introduzir mecanismos de optimização do transporte nas mãos das massas; ou da democratização do transporte de longa distância através da Bla bla car, entre outros.

São pequenos indicadores de pressão que se traduzem numa vontade global de aplicar tecnologias a este sector simplesmente porque já é suscetível a tal. Já as grandes alterações de produtividade estão centradas na aplicação de AI (inteligência artificial) à automatização da condução. Veículos auto-conduzidos são uma realidade atualmente concretizada por empresas como a Google, Tesla e Volvo, dando clarividência sobre a ubiquidade destes num futuro próximo.

O acréscimo de produtividade que nestes sistemas torna supérflua a existência de condutores advém da maior capacidade de percepção dos arredores dos veículos, por exemplo sabem o que se passa à volta deles ao centímetro, assim como da capacidade de decisão ordens de magnitude mais rápida e do potencial de comunicação quase-instantânea com os demais veículos e infraestruturas rodoviárias. Mas, não intuitivamente, são as limitações humanas e não a perfeição dos sistemas autónomos que criam o potencial de produtividade: estes veículos enquanto conduzem não se desconcentram, não se cansam, não ralham com a rádio, não escrevem no whatsapp, não bebem, não piscam os olhos nem adormecem ao volante.

Naturalmente, da perspectiva, por exemplo, das transportadoras de mercadorias, é imensamente apetecível ter camiões constantemente na estrada com rotas automáticas e optimizadas. Menores custos de manutenção, de transporte, e de salários. Avançando uns anos, imagine-se agora na perspectiva de uma cidade, onde os semáforos se tornam inúteis, as buzinadelas são trocadas pelo ligeiro zumbido dos carros eléctricos, as filas de trânsito dão lugar a um fluxo quase liquido de veículos em rotas super optimizadas que levam a uma redução de 70% dos tempos de viagem na cidade. Falei de camionistas e condutores comuns, mas não só. Táxis, autocarros, carrinhas de transporte de encomendas e mercadorias, metros, e até camiões do lixo e de limpezas urbanas. Deixa simplesmente de ser eficiente serem conduzidos manualmente. A larga maioria dos lobbies estará a favor, como são exemplo as seguradoras que naturalmente terão um risco muito menor (embora no longo prazo possam ter uma praticabilidade questionável), ou as construtoras de automóveis, que evoluirão para um modelo de Taxi-as-a-Service uma vez que a aquisição de veículos próprios diminuirá.

É especulativo enquanto factos, mas inevitável como rumo.

Waymo, o carro autónomo da Google


É o fim do mundo?

“One person’s productivity enhancing tool is another’s pink slip, or a job opening that no longer needs to be filled.”

Julia Kirby

No inicio do século XIX a agricultura representava o rendimento da larga maioria da população portuguesa, enquanto que em 2016 menos de 8% da população trabalha no sector primário. No entanto esse decréscimo não se reflectiu no disparo da taxa de desemprego, que está actualmente pouco acima de 10%.

A percentagem de população que trabalha no sector primário diminui numa cadência acentuada, enquanto o desemprego se mantém um factor independente. A correlação entre os dois não é significativa (-35%). Fonte: Pordata

Para onde migrou essa massa laboral? Quando a inovação tecnológica induz uma redução da necessidade de trabalho os custos de produção baixam (mais produtividade) reduzindo o preço. Os consumidores acabam por ficar com mais capital, que será gasto no mesmo ou outros sectores, levando à geração de empregos. O aumento de competitividade leva à necessidade de mais inovação e crescimento, o que cria novos postos de trabalho. Aquelas posições do inicio do século transformaram-se noutras diferentes, com melhores condições, cada vez menos manuais e mais intelectuais.

Mesmo empregos mais recentes também perecem, como é o caso dos corretores de bolsa, agentes de viagens ou bancários, mas novas posições nascem no seio desse incremento de produtividade e avanço tecnológico, como por exemplo Blogger, Especialista em SEO, Gestor de redes sociais, Arquitecto de software, Animador 3D ou Produtor de vídeos para um canal do Youtube. Em suma, a aplicação de inovação tecnológica (aumento de produtividade) não implica o aumento do desemprego.

À medida que a produtividade aumenta a taxa de desemprego mantém-se. Fonte: Pordata

No entanto não é tão claro que estejamos a replicar o paradigma do passado. Há que frisar dois factores que poderão alterar o equilíbrio entre a inovação e a estabilidade da empregabilidade:

Primeiro, a candência com que a produtividade cresce no tempo tem um papel a desempenhar em garantir a sustentabilidade da inovação. Isto é, se o aumento for demasiado rápido a criação de novas posições não conseguirá acompanhar o desaparecimento das que são afectadas, levando a um aumento do desemprego no curto prazo. Este efeito, chamado de desemprego tecnológico ou desemprego estrutural, é magnificado pelo facto das capacidades dos trabalhadores serem desconexas para com as necessidades do mercado de trabalho. No caso do sector automóvel o impacto poderá ser tectónico.

Especulo ainda que este fenómeno acontece apenas se a velocidade de formação e educação de uma área for superior à velocidade de automatização das suas áreas subjacentes, já que os aumentos de produtividade crescem das áreas mais manuais para as mais intelectuais. Uma aposta forte e continua na requalificação da mão de obra terá de passar a fazer parte dos planos governamentais de qualquer país que aposte na inovação tecnológica de modo a evitar o desemprego estrutural.

Segundo, é igualmente importante frisar que podemos estar no limiar de uma singularidade económica. A evolução tecnológica tem naturalmente impactado os sectores mais manuais, exercendo pressão para os trabalhos serem cada vez mais intelectuais. Mas tecnologias mais recentes, sobretudo sob o desenfrear da inteligência artificial, têm tido um papel pesado no aumento da produtividade de posições racionais, como medicina, jornalismo, ou direito. O fim do trabalho intelectual significaria o limite das competências laborais humanas, e talvez seja um cenário que a sociedade tenha de enfrentar em poucas décadas.

«In 1900 there were around 25 million working horses on farms in America; now there are none. 1900 was “peak horse” in the American workplace. Are we heading towards “peak human” in the workplace?»

Calum Chace, The economic singularity


Mudança de paradigma

Estamos actualmente na segunda era de uma técnica chamada de redes neuronais artificiais (ANN), sendo que a primeira, em 1960, foi quase puramente exploratória das suas capacidades. Embora ainda longínqua, a terceira era das ANN introduzirá uma evolução na inteligência artificial equiparada e superior às capacidades humanas, trazendo consigo não só uma singularidade económica, mas uma alteração fundamental à sociedade, quiçá maior que a introdução da agricultura. Até lá a segunda era vai continuar a proliferar, da mesma forma que a revolução industrial impregnou todos os sectores, requerendo uma análise contínua e atenta às capacidades e educação dos sectores mais manuais e fortes políticas de requalificação. Um governo desprevenido para com as inovações (sobretudo em sectores basilares como o dos transportes) poderá rapidamente causar ondas de desemprego e perder competitividade internacional.

O paradigma que se viveu durante muitas décadas, onde a educação implicitamente dava direito a um lugar no mercado de trabalho e um emprego seria para toda a vida, está a romper-se porque as evoluções tecnológicas cada vez mais rápidas levam a empregos com existências cada vez mais curtas. A maior capacidade deste século será a perseverança de continuar a aprender.

Referências:

Video: Automation and The Future of Work , Video: Humans Need Not Apply , Video: Are droids taking our jobs? , Video: Why Automation is Different this Time , Article: The Future of Employment , Article: How Technology Is Destroying Jobs , Article: What Amazon Teaches Us About AI and the “Jobless Future” , Academia: Productivity and Unemployment , Article: The 5 Jobs Robots Will Take Last , Article: The Industrial Revolution: Poverty or Prosperity? , Book: The Singularity Is Near , Book: Race Against The Machine , Article: Productivity and Employment — A Structural Change? , Article: The Challenge of Long Term Job Growth , Article: A inteligência artificial é um alerta , Article: The ‘uberisation’ of the workplace

Um agradecimento a Isabel Saavedra pela revisão e comentários construtivos.

Blog Logo

Paulo Gaspar


Published

Image

Paulo Gaspar

Tecnologia, Futurismo, Economia, e outros discursos pedantes

Back to Overview